O juiz Eduardo Appio da 13ª Vara Federal em Curitiba foi afastado do posto na noite de segunda-feira (22), após uma decisão do Tribunal Regional Federal da Quarta Região (TRF-4). O afastamento se deu por uma suspeita de que ele teria ameaçado o filho do desembargador federal Marcelo Malucelli por meio de uma ligação com número bloqueado.
O relatório da decisão, obtido pela CNN, afirma que “pôde-se perceber existir muita semelhança entre a voz do interlocutor da ligação telefônica suspeita e a do juiz federal Eduardo Fernando Appio, tendo então a Presidência do TRF4 e a Corregedoria Regional noticiado esses fatos à Polícia Federal e solicitado realização de perícia para comparação do interlocutor da ligação suspeita com aquele magistrado federal”.
A CNN ouviu o presidente da Associação Nacional de Peritos Criminais Federais (APCF), Willy Hauffe, para entender como funciona o trabalho de perícia em materiais de áudio ou ligação.
O processo começa quando há algum material questionado. E depois ocorre a comparação de locutor, ou seja, o exame de reconhecimento.
“O exame é de baixa automação. Leva em consideração vários fatores, coloca a voz em equipamentos, mede ondas e frequência de onda, por exemplo. Essa é a análise técnica. Depois vem a análise subjetiva, onde o perito analisa pontos como sotaque, regionalismo e vícios de linguagem. Tudo isso é analisado. Se puxa a letra R, por exemplo”, detalhou à CNN.
Hauffe explica que na perícia de áudios existe uma escala de -4 a +4 para saber a verossimilhança. “Essa do juiz Eduardo Appio deu +3, que é muito mais plausível. No mundo prático, é muito forte. É considerado muito bom”, conta.
O especialista ressalta que o laudo +3, porém, não é 100%. “Teria que simular o mesmo ambiente para dar 100%”.
O perito destaca que esse é um trabalho complexo e quem faz essa perícia tem curso específico dentro da Polícia Federal para realizar o trabalho. “O ‘curso de comparação de locutor’ demora três meses e a PF dá nos estados. Não é qualquer perito que faz”, explica.
Esse laudo do juiz Eduardo Appio foi produzido no Setor Técnico Científico da Superintendência de Polícia Federal do Rio Grande do Sul. Em perícias de áudios, o laudo vai para o inquérito para conclusão do delegado.
O último caso de grande repercussão de perícia em áudio foi em 2017, numa gravação entre o empresário Joesley Batista, dono da empresa JBS, e o então presidente Michel Temer. Nesse caso, após um longo trabalho, os peritos concluíram que não houve edição de conteúdo, ou seja, não houve manipulação nos diálogos, mas havia interrupções “naturais” no áudio.
Entenda o caso
O filho do desembargador federal Marcelo Malucelli teria recebido uma ligação de alguém que se identificou como um servidor da Justiça Federal chamado “Fernando Gonçalves Pinheiro” e pediu para falar com o desembargador. Posteriormente, foi verificado que não existe servidor com esse nome na Justiça Federal da 4ª Região.
O desembargador noticiou que seu filho havia recebido uma ligação telefônica em 13 de abril que entendia capaz de “evidenciar ameaças a ele direcionadas” e que “também encaminhou documentos relacionados à ligação telefônica, inclusive gravação desta e atas notariais a certificar o contexto dos fatos”.
A ligação telefônica pareceu suspeita, pois foi realizada com um número bloqueado através do sistema Skype, que o interlocutor justificou estar utilizando para economizar valores da Justiça Federal na ligação, uma política inexistente.
O relatório da decisão afirma que “pôde-se perceber existir muita semelhança entre a voz do interlocutor da ligação telefônica suspeita e a do juiz federal Eduardo Fernando Appio”. Por conta disso, o material foi encaminhado à perícia.
O magistrado, que estava responsável pela Operação Lava Jato no estado do Paraná, foi afastado do cargo, porém a decisão não é definitiva. Appio terá 15 dias, a partir do momento em que for notificado, para apresentar sua defesa.
Veja a íntegra da conversa telefônica que consta no relatório:
Voz 1: Fernando Gonçalves Pinheiro, o senhor pode pode ligar novamente pra cá, não não há problema nenhum, eu só preciso eh… que o senhor passe eh… o telefone ou passe o contato pro pro doutor Marcelo Malucelli em relação aos extratos aqui do imposto de renda referente aos filhos, é uma coisa do passado, é um resíduo do passado, que ele tem um crédito que pode abater no imposto de renda, pode computar em favor.
Voz 2: ‘Hum’ entendi, mas olha me me desculp…
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: Me desculpe, o senhor tá ligando sem ID do chamador, eu ‘num’ ‘num’ não faço ideia quem quem seja.
Voz 1: ‘Ah’ mas o s… o senhor, tudo bem. Mas consta o senhor aqui como sendo um dos filhos e consta aqui o seu número. Então nós estamos ligando pra isso.
Voz 2: ‘Hum’ mas assim, eu não eh… essa história tá bem estranha, viu? Me desculpe, com todo respeito, mas eh… se o Marcelo…
Voz 1: Como é que eu teria o seu telefone aqui eh… é uma questão só de imposto de renda. Ah se o senhor quiser eu ligo diretamente pro seu pai, não tem problema ligo (incompreensível)…
Voz 2: (Incompreensível)
Voz 1: Não há problema nenhum.
Voz 2: Então, então acho melhor o senhor fazer isso, né?
Voz 1: Então eu faço isso, ligo diretamente pro seu pai e faço isso, eu só não queria incomodar, que aqui consta o seu número, seu nome, seu CPF e e a questão de resíduos do passado de despesas médicas, a ideia era não incomodar. Mas se o senhor prefere assim, liga… nós ‘tamo’ só utilizando aqui um sistema aqui via Skype pra economizar valores da Justiça Federal. Não, não há, não há… se não aparece é só por isso. Mas eu ligo pra ele diretamente, não há problema nenhum.
Voz 2: É, sim, é que o senhor ligou e falou…
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: O senhor ligou e falou, eu gostaria de falar com o Marcelo Malucelli, agora o senhor tá falando que aparece aí que eu sou filho. Então assim, fica, fica meio ambíguo, né? Até ah…
Voz 1: É ah… o contato que eu tenho do, do, do doutor Marcelo Malucelli deve ser um contato antigo, aparece o seu telefone, então por isso que eu li… nós estamos ligando…
Voz 2: Não, esse número nunca foi do Marcelo Malucelli, senhor, me, me perdoa. E também, assim, eh… eu, eu, faz muito tempo já que eu não, também, não, não tenho qualquer tipo de cooperação de convênio junto a justiça federal por conta eh… de dependência de servidor. Eu já sou maior de idade faz tempo e ‘num’ não tenho convênio algum.
Voz 1: Não, sim, sim, mas aqui… sim, sim, isso aqui é uma data antiga, eh… o senhor tem vinte e oito anos de idade, isso aqui deve ter feito de coisa de mais de dez anos atrás, com certeza, dez, quinze anos atrás. Pelo menos aqui as datas que se refere aqui, dois mil um, dois mil e dois, isso é coisa antiga.
Voz 2: Ah, então tá bom. Então o senhor entra em contato com ele, beleza?
Voz 1: Mas se o senhor prefere eu ligo pro seu pai diretamente, eu só não gostaria de incomodá-lo, só isso.
Voz 2: Tá bom, claro. Pode ligar então. Faça o que, o que for melhor.
Voz 1: Então eu ligarei, digo que eu falei com o senhor, digo que falei com o senhor e que o senhor me autorizou a ligar pra ele, incomodá-lo no próprio tribunal.
Voz 2: Ah pode, pode falar. Incomodá-lo! Qual é o nome do senhor mesmo? Fernando Pinheiro Gonçalves, né?
Voz 1: Isso.
Voz 2: Ah, tá.
Voz 1: Pode, pode chamar aqui no setor de saúde que nós estamos aqui.
Voz 2: Setor de saúde.
Voz 1: (Incompreensível)
Voz 2: Setor de saúde, Fernando Pinheiro Gonçalves. Tem certeza que esse é o nome do senhor?
Voz 1: Tenho certeza absoluta.
Voz 2: Então tá bom.
Voz 1: E o senhor tem certeza que, que não, não tem aprontado nada?
Voz 2: Ah, agora tá, tá certinho. Aprontado?
Voz 3: Meu Deus! Li…”
*Com informações de Caio Junqueira, da CNN
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Fonte: CNN Brasil